quarta-feira, 20 de outubro de 2021

Brama no vale da Cerdeira, mas os esquilos chegaram primeiro

 28 de Setembro 2021


Estamos naquela altura do ano em que os machos iniciam a corte, desafiando-se entre si e chamando as fêmeas. Ao nascer do dia e ao por-do-Sol a brama dos veados ecoa nos vales da serra. Os relógios biológicos, ainda que confusos com as alterações climáticas, continuam a funcionar com a regularidade de centenas de gerações. Os vale da aldeia da Cerdeira, adjacente ao das aldeias abandonadas das Silveira, é um dos locais habitados por estes magníficos animais. São quase um refúgio porque há anos via-os noutras encostas e nas cumeadas por toda a serra. Tantos encontros imediatos do terceiro grau que tive com estes nossos primos biológicos; pedaladas silenciosas por caminhos no alto e, na curva do caminho, um reboliço, eles e eu num grande susto. Ainda hoje os vejo, mas com menos frequência. Estradas asfaltadas para as aldeias de xisto (isto é, filas de carros), os gajos das motas que lavram o chão da floresta impunemente, a falta de planificação dos trilhos de downhill, a serra que está na moda, atraindo turistas do tipo usa-e-deita-fora, etc, leva-os a refugiarem-se em zonas mais remotas. O vale da Cerdeira é um desses locais.

Lá fui. Final de tarde, céu limpo - e, logo, previsivelmente, um pôr-do-Sol dourado com os últimos raios a iluminar as cumeadas sobre os vales já sombrios, cenário de que eles gostam para bramar - dia de semana e a Cerdeira logo ali.

Ia ainda em modo aquecimento (porra, o tendão está outra vez a doer, mais devagar, aquecer bem, devagar, chego a tempo), serra acima pela EN236 quando, de súbito, pressinto um vulto na estrada (estou muito treinado na detecção de movimento na periferia da visão e, embora a visão já não seja o que era, décadas a passear por serranias desenvolvem intuitivamente esta capacidade), olho em frente e um esquilo salta um muro do lado direito da estrada, começa a atravessá-la aos pulos mas, às tantas, pára a meio a olhar para mim. Estava longe, talvez 20 m, e também parei. Lentamente, levei a mão ao bolso traseiro da jersey (é assim que chamamos às camisolas de ciclismo) para tirar o telemóvel. Pisgou-se logo, fugindo pelo lado esquerdo da estrada. Fui até lá, de telemóvel na mão, tentando vê-lo. Havia ali um grande cedro e talvez o tivesse subido. Estava nisto quando, de novo, um vulto na periferia da visão: um outro esquilo, mais pequeno, no muro do lado direito de onde tinha vindo o primeiro. Ou parceiro ou filhote do primeiro. Seguia o mesmo percurso. estavam juntos, portanto. Talvez filhote porque olhou para mim e inclinou a cabeça (como fazem os cães quando estão a tentar perceber alguma "cena"), muito admirado (estávamos muito perto um do outro), claramente admirado, tentando perceber que raio era "eu". Seguramente eu era o primeiro homo sapiens vestido de licra e com capacete que ele via na sua vida. Apontei o telemóvel e apanhei-o neste passo de dança ao longo do muro. 


Nem percebi para que lado ele foi mas saí dali rapidamente para que ele reencontrasse o rasto do parceiro. Não me ia armar em pau de cabeleira com os esquilos, obviamente. Que se reencontrassem e em breve.

O fim de tarde na expectativa da brama dos veados estava a correr bem. Caso os cavalheiros resolvessem não bramar ou caso tivessem ido bramar para outro lado, pelo menos já tinha tido o encontro imediato do terceiro grau com os esquilos.

Mil pedaladas depois, mais coisa menos coisa, estava no cruzamento para a Cerdeira. Uma rampa dos infernos até à aldeia, curta mas com inclinações do catano, to say the least. No início da subida, o monólito: Cerdeira, home for creativity ! Mas onde é que por esse mundo fora há uma aldeia de xisto encravada num vale remoto (a estrada alcatroada que lhe dá acesso é recente) e que esteve décadas habitada por apenas uma família (alemã) tem no cruzamento um monólito com a inscrição: home for creativity? Como é bem sabido foi neste monólito que o Stanley Kubrick se inspirou para o do 2001 Odisseia no Espaço.



Subir em esforço, tanto é o hábito, que o esforço se vulgariza. Às tantas, subir em esforço é um passeio à beira-mar (tirando o suor, a linguagem tabernácula que se vai soltando para dar ânimo, as dores aqui e ali e etc). Parei numa curva, num altinho alinhado com o vale que se estende para Oeste (para quem não está a ver a coisa: que se estende na direcção onde se põe o Sol) e onde sei que incidem os últimos raios de Sol quando este vai já rasante ao horizonte. Sentei-me numa pedra do costume e roí a laranja que levava no bolso.

Pus-me à escuta. Ouvi-os, mas longe. Bramavam mais acima, mais perto da aldeia. O Sol baixava, a hora era ideal. Portanto, pedaladas por ali acima até à Cerdeira.

Quando cheguei a aldeia estava já à sombra. O Sol iluminava a encosta oposta.  



Ouvi-os. O som cavo e grave (que faz ressonância nos ossos) ecoava pelo vale. Percebi que estavam provavelmente no fundo do vale, na transição entre o Sol e a sombra. Talvez dois ou três. Em cada minuto 3 ou 4 bramados (bramidos?). Inicialmente, o som vem intenso, mas, em meia dúzia de segundos, dilui-se pelas encostas. Puxei pelo telemóvel e, como noutros anos, tentei gravar o som. Nada de jeito. Com o telemóvel não dá.

Estava nisto quando percebo nas minhas costas uns estalidos. Estava no largo sobranceiro à aldeia. Como as encostas são íngremes, o largo é limitado pela parte de cima por uma barreira. Uma fêmea andava por ali, na orla da floresta junto à barreira. Às tantas, outra. Os machos berravam lá no fundo do vale e elas por ali, a pastar na calmas, desinterressadas. Zoom no máximo e clique. A resolução, claro, uma merda. Fiquei a observá-las em silêncio, tentando não me mexer. Baixavam-se para pastar, iam andando e, de vez em quando, levantavam a cabeça para me observar. Percebi que tínhamos ali uma relação. Eles sabiam que eu estava ali, mais em baixo e inofensivo. Conheciam o homo sapiens (não sei, todavia, se, tal como o esquilo, seria o primeiro de licra e capacete que viam), mas, lá em cima, sentiam-se confortáveis.


Aproximei-me devagar. Levantavam a cabeça e, logo, continuavam a pastar. Sentiam-se seguras. De vez em quando ouviam-se os bramados dos machos lá longe. Elas, nada. Fui até ao inicio da barreira e fiz uns videozinhos.

Tentei aproximar-me em silêncio (com sapatinho de sola de carbono com encaixes de metal não é fácil caminhar em silêncio). Sempre com o receio de que, num pulo, elas corressem serra acima, apontei o telemóvel e clique, gravei. Ficaram tranquilas. Inteligentes, sabiam que, estando eu em baixo,  e sendo homo sapiens, não conseguiria num pulo (como elas fazem) trepar a barreira. De vez em quando quebrava um galho no chão, elas levantavam a cabeça, olhavam-me, avaliavam a situação e continuavam a pastar. Mãe e cria, talvez. De vez em quando ouvia-se o bramado a ecoar pelo vale. Eles lá em baixo no fundo do vale a fazer pea vida, chamando-as, e elas aqui em cima a pastar, despreocupadas, sem ligar a ponta de um corno. Quer dizer sem ligar nenhum porque cornos elas não têm.




Encorajado pelo desinteresse que elas manifestavam quer pelos veados quer por mim, aproximei-me o mais que pude.

Mais um videozinho. Às tantas, bramei. Nada. Não as consegui impressionar. Levantavam a cabeça, lentamente, com ar aborrecido e, logo, continuavam a pastar. 



Foi já de noite que dali saí. Fiz outros videozinhos. Tentei apurar o meu bramado, mais grave, mais agudo, como modulações de voz, copiando os machos no fundo do vale mas debalde. Um desinteresse total pela parte delas.

A descida foi feita a grande velocidade. Sem luz na bike valeu-me o conhecimento da estrada. O meu grande receio (quando a noite me apanha na serra) é que um animal se cruze na estrada comigo. Já uma vez, completamente de noite, numa das curvas no cimo da serra, quase embati em vários animais. Confiei na lua cheia mas o céu nublou-se. Eles estavam deitados na estrada, eu apareço silencioso de bike, às escuras, e foi um reboliço. Entrei por ali adentro, cada um a fugir para seu lado e, milagrosamente, não bati em nenhum. 




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